sábado, 12 de outubro de 2024

The Issues




















Num panorama político cada vez mais polarizado e onde existem menos indecisos e menos swing voters, os grandes temas das campanhas vão perdendo destaque e importância na corrida eleitoral, mas, ainda assim, existem alguns assuntos que dominam as atenções e são decisivos aquando da escolha do sentido de voto dos eleitores. Importa, por isso, passar em revista os principais temas que têm dominado a campanha pela Casa Branca e que determinarão o vencedor da eleição.

Economia - Como sempre, "it's the economy, stupid" e a economia continua a ser o factor mais importante que os eleitores analisam quando decidem o seu voto. Actualmente, a economia norte-americana está numa situação relativamente positiva, com o desemprego em baixa, a bolsa em alta e o poder de compra a subir ligeiramente. Segundo as tendências, a economia ainda melhorará, ainda que pouco significativamente, até 5 de Novembro.

Posto isto, seria de esperar que Kamala Harris, vice-presidente na actual administração, colheria os louros da boa prestação económica dos Estados Unidos. Contudo, no tema da economia, é Donald Trump que tem levado vantagem junto dos eleitores, principalmente pelo trauma que a alta inflação de 2022 e 2023 deixou na população norte-americana durante o mandato de Biden e porque a maioria dos eleitores tem memória positiva do mandato de Trump no que à economia diz respeito.  

Democracia - A insurreição de 6 de Janeiro de 2021 e a negação da derrota na última eleição por parte de Trump, colocou dúvidas sobre a saúde da democracia dos Estados Unidos da América. Muitos democratas temem que, caso perca, Donald Trump volte a não assumir a derrota e apele à revolta dos seus apoiantes, o que pode originar numa nova onda de violência. Temem ainda que, caso vença, Trump utilize o seu poder presidencial para atacar até acusar judicialmente os seus adversários políticos. 

Por seu lado, grande parte do eleitorado republicano, baseado em informação falsa e totalmente infundada, preocupa-se com uma eventual fraude eleitoral, como votos de imigrantes ilegais, que impeçam a vitória do seu candidato, como alegam, falsamente, ter acontecido há quatro anos. 

Segurança e Imigração - Apesar de serem dois temas claramente distintos, escolhi juntar a segurança e imigração num só tópico dada a clara estratégia da campanha republicana em ligar a imigração a uma alegada sensação de insegurança no país. Para a história dos debates presidenciais americanos ficou já a estapafúrdia frase de Trump "They're eating cats and dogs", alegando que imigrantes do Haiti estariam a raptar e comer animais domésticos numa pequena cidade do Ohio. Apesar dos exageros e da retórica incendiária de Trump, a verdade é que os americanos estão mesmo preocupados com o aumento dos números da imigração e com a situação na fronteira com o México, que continua a ser atravessada por milhares de imigrantes ilegais à procura de uma vida melhor.

Apesar de os Estados Unidos serem, desde a sua fundação, a Terra da Oportunidade e de a Estátua da Liberdade ter uma inscrição que começa com "Give me your tired, your poor", a desconfiança em relação aos que chegam do exterior tem vindo a crescer. E já não são apenas os brancos a defender uma maior restrição à imigração: os afro-americanos e mesmo os hispânicos de segunda ou terceira geração temem uma grande vaga migratória que ameace os seus empregos e mesmo a sua segurança. Por isso, este é um tema onde a mensagem republicana, de fecho de fronteiras e deportação de imigrantes ilegais leva vantagem sobre a posição mais permissiva dos democratas.

Educação e Saúde - Menos presenet do que noutros ciclos eleitorais, os assuntos internos da nação americana, como a educação, a saúde ou a segurança social, têm sido, desta vez, menos falados. Isto acontece, principalmente, porque é menor a diferença entre as posições dos dois grandes partidos. Trump é um populista e não um conservador fiscal e defensor de um small government, como os candidatos republicanos tradicionais, e até já deixou de tentar desmantelar o Obamacare, o sistema de saúde reformado por Barack Obama que, ao longo dos anos, se tornou bastante popular. Como é tradicional, os norte-americanos continuam a confiar mais nos democratas para estes temas, mais relacionados com o welfare state e com os serviços providenciados pelo estado, por isso talvez não seja uma boa notícia para eles que estes assuntos estejam menos presentes na campanha. 

Aborto - Se no tópico anterior falei num assunto caro aos democratas, mas agora menos premente na opinião pública, o aborto pode muito bem ter sido o tema que veio compensar essa perda. A revogação da "Roe v Wade" pelo Supremo Tribunal voltou a trazer o aborto para a linha da frente das campanhas eleitorais norte-americanas. Este tema tem sido bastante "cavalgado" pelos candidatos democratas e essa estratégia teve resultados muito positivos nas eleições intercalares de 2022. Sem uma resposta coerente e eficaz para um assunto onde a posição republicana é altamente impopular, o GOP tem procurado não falar no tema, o que não tem resultado perante a insistência democrata em apostar no aborto como tópico constante no trilho de campanha. Donald Trump tem feito grandes flip flops sobre este tema, o que ainda tem ajudado mais a campanha de Kamala Harris, que aposta forte neste tópico para incentivar o eleitorado feminino (em especial, as jovens) a votar na candidata democrata. 

Política Externa - Deixei para o fim o tema que nos diz mais a nós, não norte-americanos: a política externa dos Estados Unidos. Este ano, a guerra na Ucrânia e o conflito israelo-palestiniano têm dominado as notícias e trazem algumas da mais profundas diferenças entre Kamala Harris e Donald Trump. Se Kamala quer manter e até aumentar o apoio norte-americano à Ucrânia, já Donald Trump, cuja boas relações com Putin são conhecidas, já disse querer cortar o apoio à nação invadida pela Rússia e ajudar a encontrar uma solução imediata para o fim da guerra na Europa Oriental. No que diz respeito à situação no Médio Oriente, o candidato republicano é totalmente pró-israelita enquanto que a democrata tenta um maior equilíbrio entre o apoio a Israel e a procura de uma solução de dois estados para o conflito, apelando à contenção de Israel nas suas acções militares, reflectindo esta posição uma maior divisão do eleitorado democrata à relativamente questão israelo-palestiniana. 

Assim, se Putin e Netanyahu preferirão, obviamente, uma vitória de Donald Trump, já a esmagadora maioria do mundo ocidental torcerá pela vitória de Kamala Harris, até porque o anterior presidente continua a ameaçar com um isolacionismo cada vez mais pronunciado e que poderá minar a coligação política e militar do Ocidente. Porém, para os norte-americanos, em 2024, a política externa continuará a ser muito pouco relevante na hora de escolherem em quem votar, já que serão os assuntos internos, referidos em cima, a revestirem-se de maior importância para a grande decisão de 5 de Novembro.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

O que os números nos dizem


Abri este ciclo de 2024 no Máquina Política a apresentar os battleground states decisivos para a escolha do próximo presidente dos Estados Unidos. Nesse post, salientei que a corrida está empatada e totalmente em aberto, mesmo que hoje tenha saído uma sondagem Reuters/Ipsos nacional que apresenta uma vantagem de sete pontos percentuais para Kamala Harris (47%-40%). Todavia, e tendo em conta todos os estudos de opinião conhecidos, é provável que esta sondagem seja um outlier, ainda que não se possa descurar que este resultado seja a primeira manifestação de uma tendência que venha a ser confirmada mais tarde.

A menos de um mês do dia das eleições, é previsível que não haja grandes alterações no estado da corrida, salvo uma surpresa de Outubro ou se Donald Trump aceitar um novo debate televisivo. Assim, podemos antever que aquilo que as sondagens no dizem hoje é muito representativo dos resultados eleitorais definitivos. Isto, claro, se considerarmos que as sondagens não falharão, como aconteceu em 2016 e em 2020.

Em média, as sondagens têm um desvio de cerca de 4% relativamente ao resultado final. Por isso, e como o consenso dos estudos de opinião é que a corrida se encontra empatada, podemos ainda ter um resultado relativamente desnivelado para qualquer um dos lados, sendo que, a verificar-se tal desvio, será mais provável que aconteça a favor de Trump, cujos resultados foram subvalorizados nas duas anteriores eleições. Porém, com dois ciclos eleitorais para analisarem, e com o fenómeno Trump hoje bem mais consolidado, é natural que as empresas de sondagens tenham conseguido adaptar os seus modelos de forma a preverem com mais exactidão os resultados do nomeado do GOP.

Por outro lado, importa perceber que, por causa do sistema de Colégio Eleitoral, os números nacionais pouco importam para termos uma noção de quem lidera a disputa pela Casa Branca. Como aconteceu em 2016 e 2020, os republicanos contam com uma importante vantagem nos votos eleitorais, porque os democratas "desperdiçam" muitos votos em estados muito populosos (a Califórnia é o melhor exemplo) e porque os republicanos vencem em muitos dos estados mais pequenos, cujo peso no Colégio Eleitoral é desproporcionalmente elevado. Desta forma, calcula-se que Kamala Harris terá de vencer pelo menos por 3% no total dos votos para estar confortável na contagem dos votos eleitorais.

Assim, o mais relevante será seguir os números nos sete estados decisivos, mas como todas as sondagens têm colocado a corrida em todos eles como estando dentro da margem de erro, também não conseguimos, neste momento, retirar grandes ilações a não ser aquela que já fiz: a eleição está empatada e é impossível antecipar um vencedor. Seja como for, deixo em baixo um apanhado das previsões dos vários analistas e modelos de agregação de sondagens, ficando bem demonstrado a total imprevisibilidade da corrida pela presidência norte-americana. 

Nate Silver Bulletin - Harris 55% - Trump 45% (hipóteses de vitória)

FiveThirtyEight - Harris - 53% - Trump 46% (hipóteses de vitória)

Cook Political Report - Harris 226 - Trump 219 (votos eleitorais)

Larry Sabato's Christal Ball - Harris 226 - Trump 219  (votos eleitorais)

Real Clear Politics - Harris 215 - Trump 219 (votos eleitorais)

The Economist - Harris 273 - Trump 265 (votos eleitorais, sem toss ups)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

The Donald













Em 2016, no início da campanha das primárias presidenciais republicanas, disse, num programa da TSF, que fazia todo o sentido que a candidatura de Donald Trump fosse seguida, como fazia o Huffington Post, nas secções de entretenimento dos media e não nas de política. Não podia ter dito um maior disparate, pois, hoje, oito anos depois, Trump já venceu três nomeações presidenciais pelo GOP e ocupou, durante um mandato, a Sala Oval. Como em 2016 e em 2020, The Donald é novamente o candidato do partido conservador à Casa Branca.

Trump nasceu em 1946, no seio de uma família abastada. O seu pai era um empresário de sucesso no sector do imobiliário e Donald frequentou sempre escolas privadas de Nova Iorque, incluindo a escola militar local. Tirou um degree em Economia, primeiro em Warthon e, depois, na Universidade da Pennsylvania. 

Terminados os estudos, Donald Trump empregou-se na empresa do pai, a Trump Management, e começou uma vida dedicada ao imobiliário. Primeiro, sob a alçada do pai e, mais tarde, de forma independente, o magnata tornou-se um nome incontornável na cena imobiliária de Nova Iorque e dos Estados Unidos. O seu sucesso é alvo de muita polémica e o seu império sofreu muitos altos e baixos, mas é indesmentível que, durante décadas, o nome Trump foi sinónimo de prosperidade e riqueza. 

O seu império, mas também as suas várias polémicas, tanto a nível profissional como pessoal, fizeram dele uma das grandes figuras da vida cor-de-rosa de Nova Iorque. Trump tornou-se um ícone da cultura popular norte-americana e, depois de ganhar fama no imobiliário, apostou forte no show business (quem não se lembra do seu cameo no Home Alone 2?). No início dos anos 2000, lançou o seu próprio reality show, o The Apprentice, que rapidamente se tornou um grande sucesso e duraria até ao seu protagonista chegar à Casa Branca. 

Depois dos negócios e do entretenimento, Trump procurou uma nova arena para brilhar e, naturalmente, virou-se para a política. Registado como republicano, apesar de ter contribuído para vários candidatos democratas - como os Clinton -, nunca se definiu propriamente como conservador. Como em tudo na sua vida, Donald procurava criar controvérsias, trazendo-se a si próprio para as luzes da ribalta. Foi assim, por exemplo, que, em 1988, se auto-proclamou como candidato a vice-presidente de George Bush ou que se tornou uma das principais vozes que acusavam Barack Obama de não ter nascido nos Estados Unidos e, por isso, não ser elegível para a presidência da nação norte-americana. 

Em 2000, chegou a ser candidato às primárias presidenciais do Partido Reformista, apenas para desistir pouco tempo depois. Mas o momento decisivo chegaria em 2011, num célebre jantar dos correspondentes da Casa Branca, em que marcou presença e em que foi alvo das piadas de Barack Obama. Visivelmente incomodado e sentindo-se publicamente humilhado, terá sido nessa ocasião que decidiu concorrer à Casa Branca para se vingar de Obama e dos democratas. Contudo, foi a partir daí que se assumiu definitivamente como republicano e conservador, tendo mesmo participado na CPAC e marcado presença nos primeiros estados a terem primárias. Estava a lançar as sementes que dariam frutos quatro anos mais tarde.

Em 2016, os republicanos tinham de decidir quem seria o seu candidato presidencial num ano em que os democratas deixavam de ter o popular Obama no boletim de voto. Com boas hipóteses de vitória, foram muitos e de nomeada os concorrentes republicanos, como, por exemplo, Jed Bush, Marco Rubio ou Ted Cruz. Todavia, esse ciclo eleitoral foi absolutamente tomado de assalto por Donald Trump, mesmo quando muitos (eu incluído) pensavam que a sua candidatura não era séria, mas apenas uma publicity stunt destinada a aumentar as audiências do seu reality show. 

Ao longo das primárias, foram caindo um a um os vários candidatos "anti-Trump" que se destacavam nas sondagens momentaneamente. No final, a nomeação foi para Donald e essa vitória haveria de transformar radicalmente o Partido Republicano, quiçá para sempre. Trump, com o seu discurso disruptivo e sem filtros, agradou a um grande segmento do eleitorado republicano, tornando-se o herdeiro e grande representante do movimento populista Tea Party. A partir daí, o GOP passou a ser o partido de Trump e os republicanos clássicos tornaram-se uma espécie em vias de extinção. 

Contudo, na eleição geral, Trump era visto como o underdog face à favorita Hillary Clinton. A antiga primeira-dama, senadora e secretária de estado, tinha um currículo impressionante, enorme experiência e contava com o Partido Democrata totalmente do seu lado (apesar de alguns ruidosos apoiantes de Bernie Sanders). Já Donald não tinha qualquer experiência política e era visto com muita desconfiança por parte do establishment republicano. Acossado por escândalos e atrás de Hillary nas sondagens, nem o próprio Trump acreditava na sua eleição. 

Aconteceu, porém, que Hillary Clinton demonstrou ser uma candidata sofrível, tendo cometido muitos erros de palmatória. Além disso, as sondagens subvalorizaram repetidamente as hipóteses de vitória de Donald Trump e os democratas apostaram recursos em estados que não teriam hipóteses de ganhar, descurando locais onde pensavam, erradamente, estar seguros. A poucos dias da eleição, a famosa carta de James Comey terá também sido decisiva e selou a vitória de Trump que se tornou, contra todas as expectativas, o 45º presidente dos Estados Unidos.

O seu mandato presidencial foi marcado, primeiro, pela desregulação, pela quebra de acordos e tratados e internacionais e até pela ameaça da retirada dos Estados Unidos da NATO. A boa prestação da economia norte-americana nos primeiros anos do seu mandato, haveria de ser totalmente revertida pela eclosão da COVID-19. A sua gestão da pandemia foi um verdadeiro desastre e isso poderá ter ditado a sua derrota nas eleições de 2020. Do seu mandato na Casa Branca, ficam ainda para a história os dois processos de impeachment que lhe foram movidos pela maioria democrata na Câmara dos Representantes - primeiro por ter, alegadamente, sugerido trocar favores políticos por armamento numa conversa telefónica com Vladimir Zelenksy e, depois, pelo seu papel na insurreição de 6 de Janeiro de 2021.

Vencido nas urnas por Joe Biden, Trump nunca assumiu a derrota, preferindo esconder-se atrás de teorias completamente infundadas, alegando que venceu a eleição e que esse triunfo lhe foi roubado por uma massiva fraude eleitoral. Assim, Trump evitava a assunção da derrota, algo que seria fatal para alguém que, como ele,  vê o mundo dividido entre vencedores e falhados. A reação violenta dos seus apoiantes haveria de tornar o 6 de Janeiro num dia infame. Na altura, pensou-se que Trump tinha ido longe demais e que estaria acabado para a política. Porém, o seu poder total sobre a sua falange de apoio não esmoreceu e o GOP resignou-se a esquecer o sucedido e a continuar a apoiar o seu líder. Ainda hoje, a maioria dos eleitores republicanos acredita na mentira da eleição roubada, prova de que Trump controla, ainda, o eleitorado e, consequentemente, o partido republicano. 

Agora, em 2024, Donald Trump tenta a reeleição para a Casa Branca. Se contra Joe Biden a vitória parecia certa, já face a Kamala Harris a conversa é outra e o triunfo incerto. Até ao momento, Trump mantém-se igual a ele mesmo, talvez ainda mais irascível e fora de controlo. A tentativa de assassinato a que sobreviveu deu-lhe ainda mais confiança e sente-se, agora, uma figura messiânica destinada a salvar os Estados Unidos. Ou, pelo menos, é isso que gosta de dizer, ao mesmo tempo que vende bíblias, relógios e todo o tipo de parafernália com o seu nome e cara para aumentar a sua riqueza pessoal.

Acossado por vários processos judiciais, tendo já sido declarado culpado num deles, Donald Trump precisa desesperadamente de ser eleito para, pelo menos, adiar a conclusão destes processos e, até, quem sabe, perdoar-se a si próprio através do poder presidencial. Com as sondagens a darem a corrida como empatada, a vitória está em dúvida, mas uma coisa é certa: Trump já entrou para a história como, porventura, a figura mais polarizadora da história dos Estados Unidos. 

domingo, 6 de outubro de 2024

Kamala Harris, no lugar certo e à hora certa


Kamala Devi Harris é a candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos, após a histórica (e tardia) desistência do ainda presidente Joe Biden, que havia vencido as primárias do partido, praticamente sem oposição de relevo. Apesar de ter entrado tarde na corrida, Kamala teve um impacto imediato e rapidamente agregou o Partido Democrata em torno da sua candidatura à Casa Branca. 

Filha de uma imigrante indiana e de um jamaicano negro, Kamala nasceu em Oakland, na Califórnia e seguiu Direito, tendo estudado na histórica universidade afro-americana de Howard e na Universidade da Califórnia. E foi neste estado do Oeste americano que Harris fez carreira como prosecutor, primeiro como District Attorney de São Francisco e, mais tarde, como Attorney General do estado californiano. 

Em 2016, decidiu, sem surpresa, prosseguir a sua carreira na política, tendo concorrido para o cargo no Senado deixado vago pela consagrada senadora Barbara Boxer, eleição que venceu sem dificuldade. Na câmara alta do Congresso dos Estados Unidos, Kamala Harris cedo se destacou pelas suas posições progressistas, como na defesa pela legalização da cannabis ou do DREAM act. Contudo, foi principalmente nas audiências de confirmação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal que a então senadora ganhou notoriedade nacional. Na altura, utilizou a sua experiência como advogada de acusação para colocar o juiz Kavanaugh em sérias dificuldades, tanto que a sua confirmação para o Supremo esteve em dúvida mesmo até ao último momento.

Com a popularidade junto do eleitorado mais à esquerda em alta, Kamala decidiu candidatar-se à presidência em 2020 e era vista, no início desse ciclo eleitoral, como uma das principais favoritas a ser a nomeada democrata para enfrentar o então presidente Donald Trump. A sua campanha até começou bem e ficou famoso o debate em que usou a sua herança cultural para atacar Joe Biden e o seu passado no Senado, quando se dava amigavelmente com senadores republicanos sulistas (leia-se, racistas). Porém, o destaque que ganhou fez dela um alvo e nos debates que se seguiram foi atacada pelos seus adversários e o seu passado como prosecutor foi utilizado para a desacreditar junto do eleitorado mais progressista. Além disso, Harris, que nunca tinha participado numa eleição verdadeiramente competitiva, demonstrou não estar à vontade no trilho da campanha e foi perdendo momentum e apoios financeiros, até, eventualmente,  ter de desistir da candidatura e passar a apoiar Joe Biden para a nomeação democrata. 

Curiosamente, foi também um momento num debate das primárias democratas que estaria na origem da sua escolha como candidata à vice-presidência no ticket democrata, juntamente com Biden. Antes das primárias da Carolina do Sul, Joe Biden, na época quase afastado da luta pela nomeação democrata, anunciou no debate que antecedeu essa primária, que, caso fosse eleito, escolheria uma mulher afro-americana para a vice-presidência. Com essa promessa, Joe Biden tinha selado o endorsement do influente congressista da Carolina do Sul, James Clyburn, que carrega um enorme peso junto da comunidade afro-americana neste estado do sul dos Estados Unidos. Com Clyburn do seu lado, Biden venceu folgadamente as primárias do estado, conquistou o apoio do establishment democrata e garantiu a nomeação. Após a promessa que fez nesse debate, Harris foi sempre vista como a principal favorita para ser Veep de Biden, como acabaria por acontecer. 

Com a nomeação à vice-presidência garantida, Kamala Harris não se destacou de sobremaneira na campanha nacional de 2020, muito por culpa da pandemia de 2020. Cumpriu o seu papel no debate vice-presidencial face a Mike Pence, mas não deslumbrou e a sua fama como candidata medíocre em campanhas não desapareceu, mesmo após a vitória do ticket Biden/Harris que fez dela a primeira mulher na vice-presidência.

Na Casa Branca, Kamala ocupou um lugar de relativo destaque, tendo em conta que o papel do vice-presidente, sem funções executivas definidas pela Constituição, depende sempre do portfolio que lhe é atribuído pelo chefe de estado. Em especial, a vice de Biden foi mais relevante na política externa e na questão da imigração, tendo sido escolhida pelo Presidente para tentar resolver o problema da imigração ilegal na fronteira entre os Estados Unidos e o México.

O papel de um vice-presidente é sempre ingrato e os quatro anos de Kamala Harris na Casa Branca também não foram pacíficos. Com a avançada idade de Biden a assombrar as suas hipóteses da reeleição, o senior staff presidencial viu sempre a vice-presidente, bem mais jovem e enérgica, como uma ameaça à recandidatura do presidente octogenário. Não admira, por isso, que Kamala tenha ficado com a batata quente da questão da imigração, que nunca teria hipóteses de resolver, ou que saíssem constantes leaks da West Wing da Casa Branca que prejudicavam a sua imagem. 

No final, uma desastrosa prestação de Joe Biden no debate face a Trump e a enorme pressão por parte dos líderes democratas - com Nancy Pelosi a assumir a dianteira das manobras de bastidores -, levou à desistência do ainda Presidente que abdicou a favor da sua vice. Harris, herdeira da nomeação democrata sem ter de passar por primárias, assumiu a tocha do combate contra Trump e entusiasmou, de imediato, a base do Partido Democrata que voltou a acreditar numa vitória na eleição, algo que parecia já quase impossível dada a fragilidade de Biden. 

Apesar da tardia entrada na corrida, Kamala Harris tem quebrado com o passado e tem-se revelado uma boa candidata. Apesar dos problemas anteriores, manteve no lugar quase todo o staff da campanha de Biden e chamou David Plouffe, um dos grandes arquitectos das campanhas vitoriosas de Barack Obama, tendo conseguido uma transição pacífica e suave. Nos dois grandes momentos da campanha, o discurso de aceitação da nomeação e no debate frente a Trump, apresentou-se sem falhas e conseguiu duas grandes prestações. De menos positivo, até agora, apenas se lhe pode apontar ser pouco propensa para tomar riscos, como se pode ver no facto de evitar ao máximo a exposição ao media e na escolha do seu candidato a vice-presidente (continuo a achar que não escolher Josh Shapiro foi um erro). 

Kamala Harris tem, ao longo da sua vida, demonstrado uma enorme capacidade para se retransformar. Veja-se, por exemplo, que, em 2020, foi uma das candidatas mais progressistas nas primárias mais à esquerda da história do Partido Democrata para, em 2024, ser uma das nomeadas presidenciais democratas mais moderadas dos tempos modernos. Para alguns, isso representa inteligência e adaptabilidade, enquanto que, para outros, isso significará vazio ideológico e uma coluna cervical demasiado flexível.

Como se viu, fruto da sorte, das circunstâncias, ou da sua adaptabilidade, a história de vida de Kamala prova-nos que tem estado sempre no lugar certo à hora certa. Falta saber se a 20 de Janeiro de 2025, pelas 12 horas de Washington D.C. também estará no Capitólio, a prestar juramento como a primeira mulher presidente dos Estados Unidos da América. 

sábado, 5 de outubro de 2024

Os sete magníficos

Sim, ainda existem blogues e o Máquina Política é um desses dinossauros que sobrevivem à mudança dos tempos. Bem, pelo menos de quatro em quatro anos.

A exactamente um mês do dia das eleições nos Estados Unidos, o Máquina Política regressa da hibernação para acompanhar a mais importante, interessante e apaixonante eleição política do mundo, na opinião desta maquinista. 

Como não podia deixar de ser, o primeiro post sobre a corrida pela Casa Branca de 2024 é uma espécie de snapshot da disputa pelos 538 votos eleitorais que decidirão quem se sentará na Sala Oval a partir de 20 de Janeiro de 2025: Kamala Harris ou Donald Trump.

À imagem do que tem acontecido nas últimas duas eleições, em que Trump foi o candidato republicano, esta campanha pela presidência norte-americana está a ser marcada pelo equilíbrio e, neste momento, a corrida é um verdadeiro empate, sem que nenhum dos candidatos possa ser considerado favoritos. Se ouvirem ou lerem o contrário, trata-se apenas de wishful thinking, seja de um lado ou de outro.

Por causa do sui generis sistema eleitoral norte-americano, estas eleições serão decididas, como sempre acontece, num punhado de estados, já que em 43 dos 50 estados (sem contar com Washington DC, verdadeiro bastião democrata), o vencedor parece, à partida, mais ou menos decidido, salvo grandes surpresas ou erros de monta das sondagens. Se distribuirmos os votos eleitorais desses estados pelo seu presumível vencedor, percebemos que a vice-presidente Kamala Harris conta já com 226 votos eleitorais bem encaminhados e o ex-presidente Donald Trump tem 219 grandes eleitores relativamente seguros do seu lado. Ou seja, nenhum dos dois candidatos está perto de atingir o número mágico de 270 electoral votes necessários para a vitória. 

Assim sendo, as atenções estão viradas para os sete super swing states deste ciclo eleitoral: Wisconsin, Pennsylvania, Michigan, North Carolina, Georgia, Arizona e Nevada. Em qualquer um dos destes estados, o equilíbrio tem sido a nota dominante, com as sondagens a mostrarem empates técnicos em todos eles. Consequentemente, ambas as campanhas estão a apostar tudo nestes sete estados que decidirão, certamente, o vencedor da eleição presidencial.

Neste momento, e apesar de, segundo as sondagens, as diferenças entre Harris e Trump estarem, em todos estes estados, dentro da margem de erro, diria que, se tivesse de apostar, a candidata democrata terá uma minúscula vantagem no Michigan, no Nevada e no Wisconsin, enquanto Trump estará, por muito pouco, na frente na Georgia e no Arizona. Já na Pennsylvania e na North Carolina, ainda não arriscaria um favorito. 

Está, por isso, ainda tudo por decidir na corrida pela Casa Branca. Com o equilíbrio a ser a nota dominante, o mais provável é termos, de hoje a um mês, uma longa noite pela frente, sendo até provável que não seja a 5 de Novembro que ficaremos a saber quem sucederá a Joe Biden à frente dos destinos dos Estados Unidos da América.