domingo, 6 de outubro de 2024

Kamala Harris, no lugar certo e à hora certa


Kamala Devi Harris é a candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos, após a histórica (e tardia) desistência do ainda presidente Joe Biden, que havia vencido as primárias do partido, praticamente sem oposição de relevo. Apesar de ter entrado tarde na corrida, Kamala teve um impacto imediato e rapidamente agregou o Partido Democrata em torno da sua candidatura à Casa Branca. 

Filha de uma imigrante indiana e de um jamaicano negro, Kamala nasceu em Oakland, na Califórnia e seguiu Direito, tendo estudado na histórica universidade afro-americana de Howard e na Universidade da Califórnia. E foi neste estado do Oeste americano que Harris fez carreira como prosecutor, primeiro como District Attorney de São Francisco e, mais tarde, como Attorney General do estado californiano. 

Em 2016, decidiu, sem surpresa, prosseguir a sua carreira na política, tendo concorrido para o cargo no Senado deixado vago pela consagrada senadora Barbara Boxer, eleição que venceu sem dificuldade. Na câmara alta do Congresso dos Estados Unidos, Kamala Harris cedo se destacou pelas suas posições progressistas, como na defesa pela legalização da cannabis ou do DREAM act. Contudo, foi principalmente nas audiências de confirmação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal que a então senadora ganhou notoriedade nacional. Na altura, utilizou a sua experiência como advogada de acusação para colocar o juiz Kavanaugh em sérias dificuldades, tanto que a sua confirmação para o Supremo esteve em dúvida mesmo até ao último momento.

Com a popularidade junto do eleitorado mais à esquerda em alta, Kamala decidiu candidatar-se à presidência em 2020 e era vista, no início desse ciclo eleitoral, como uma das principais favoritas a ser a nomeada democrata para enfrentar o então presidente Donald Trump. A sua campanha até começou bem e ficou famoso o debate em que usou a sua herança cultural para atacar Joe Biden e o seu passado no Senado, quando se dava amigavelmente com senadores republicanos sulistas (leia-se, racistas). Porém, o destaque que ganhou fez dela um alvo e nos debates que se seguiram foi atacada pelos seus adversários e o seu passado como prosecutor foi utilizado para a desacreditar junto do eleitorado mais progressista. Além disso, Harris, que nunca tinha participado numa eleição verdadeiramente competitiva, demonstrou não estar à vontade no trilho da campanha e foi perdendo momentum e apoios financeiros, até, eventualmente,  ter de desistir da candidatura e passar a apoiar Joe Biden para a nomeação democrata. 

Curiosamente, foi também um momento num debate das primárias democratas que estaria na origem da sua escolha como candidata à vice-presidência no ticket democrata, juntamente com Biden. Antes das primárias da Carolina do Sul, Joe Biden, na época quase afastado da luta pela nomeação democrata, anunciou no debate que antecedeu essa primária, que, caso fosse eleito, escolheria uma mulher afro-americana para a vice-presidência. Com essa promessa, Joe Biden tinha selado o endorsement do influente congressista da Carolina do Sul, James Clyburn, que carrega um enorme peso junto da comunidade afro-americana neste estado do sul dos Estados Unidos. Com Clyburn do seu lado, Biden venceu folgadamente as primárias do estado, conquistou o apoio do establishment democrata e garantiu a nomeação. Após a promessa que fez nesse debate, Harris foi sempre vista como a principal favorita para ser Veep de Biden, como acabaria por acontecer. 

Com a nomeação à vice-presidência garantida, Kamala Harris não se destacou de sobremaneira na campanha nacional de 2020, muito por culpa da pandemia de 2020. Cumpriu o seu papel no debate vice-presidencial face a Mike Pence, mas não deslumbrou e a sua fama como candidata medíocre em campanhas não desapareceu, mesmo após a vitória do ticket Biden/Harris que fez dela a primeira mulher na vice-presidência.

Na Casa Branca, Kamala ocupou um lugar de relativo destaque, tendo em conta que o papel do vice-presidente, sem funções executivas definidas pela Constituição, depende sempre do portfolio que lhe é atribuído pelo chefe de estado. Em especial, a vice de Biden foi mais relevante na política externa e na questão da imigração, tendo sido escolhida pelo Presidente para tentar resolver o problema da imigração ilegal na fronteira entre os Estados Unidos e o México.

O papel de um vice-presidente é sempre ingrato e os quatro anos de Kamala Harris na Casa Branca também não foram pacíficos. Com a avançada idade de Biden a assombrar as suas hipóteses da reeleição, o senior staff presidencial viu sempre a vice-presidente, bem mais jovem e enérgica, como uma ameaça à recandidatura do presidente octogenário. Não admira, por isso, que Kamala tenha ficado com a batata quente da questão da imigração, que nunca teria hipóteses de resolver, ou que saíssem constantes leaks da West Wing da Casa Branca que prejudicavam a sua imagem. 

No final, uma desastrosa prestação de Joe Biden no debate face a Trump e a enorme pressão por parte dos líderes democratas - com Nancy Pelosi a assumir a dianteira das manobras de bastidores -, levou à desistência do ainda Presidente que abdicou a favor da sua vice. Harris, herdeira da nomeação democrata sem ter de passar por primárias, assumiu a tocha do combate contra Trump e entusiasmou, de imediato, a base do Partido Democrata que voltou a acreditar numa vitória na eleição, algo que parecia já quase impossível dada a fragilidade de Biden. 

Apesar da tardia entrada na corrida, Kamala Harris tem quebrado com o passado e tem-se revelado uma boa candidata. Apesar dos problemas anteriores, manteve no lugar quase todo o staff da campanha de Biden e chamou David Plouffe, um dos grandes arquitectos das campanhas vitoriosas de Barack Obama, tendo conseguido uma transição pacífica e suave. Nos dois grandes momentos da campanha, o discurso de aceitação da nomeação e no debate frente a Trump, apresentou-se sem falhas e conseguiu duas grandes prestações. De menos positivo, até agora, apenas se lhe pode apontar ser pouco propensa para tomar riscos, como se pode ver no facto de evitar ao máximo a exposição ao media e na escolha do seu candidato a vice-presidente (continuo a achar que não escolher Josh Shapiro foi um erro). 

Kamala Harris tem, ao longo da sua vida, demonstrado uma enorme capacidade para se retransformar. Veja-se, por exemplo, que, em 2020, foi uma das candidatas mais progressistas nas primárias mais à esquerda da história do Partido Democrata para, em 2024, ser uma das nomeadas presidenciais democratas mais moderadas dos tempos modernos. Para alguns, isso representa inteligência e adaptabilidade, enquanto que, para outros, isso significará vazio ideológico e uma coluna cervical demasiado flexível.

Como se viu, fruto da sorte, das circunstâncias, ou da sua adaptabilidade, a história de vida de Kamala prova-nos que tem estado sempre no lugar certo à hora certa. Falta saber se a 20 de Janeiro de 2025, pelas 12 horas de Washington D.C. também estará no Capitólio, a prestar juramento como a primeira mulher presidente dos Estados Unidos da América. 

1 comentário:

  1. Que a Kamala tenha sido nascida e criada numa middle classe family ainda vá que não vá, mas afro-americana filha de jamaicano e indiana está a dar cabo da minha grografia

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