Daqui a pouco mais de meio ano, os norte-americanos terão de escolher o seu presidente, sendo ainda incerta a forma como essa eleição decorrerá, já que o novo coronavírus veio alterar drasticamente a dinâmica social com óbvias implicações nas deslocações em massa aos locais de voto. A própria campanha eleitoral está praticamente parada, sem possibilidade de se realizarem comícios, com as convenções partidárias suspensas e provavelmente a terem de vir a decorrer em moldes muitos diferentes do habitual e com o presumível nomeado democrata, Joe Biden, em isolamento social, na sua residência, limitado a vídeos pouco elaborados e a publicações nas redes sociais.
Numa situação como esta, o palco está inevitavelmente entregue ao presidente, Donald Trump, que tem a vantagem de poder aproveitar o seu cargo para se manter debaixo dos holofotes e evitar um afastamento mediático como acontece com o seu adversário. A vantagem da incumbência na gestão de crises em períodos próximos eleitorais é normalmente bem aproveitada pelos presidentes, como se viu, recentemente, com o papel desempenhado por Barack Obama na resposta ao furacão Sandy, antes das eleições presidenciais de 2012 e que foi vista, por muitos analistas, como fundamental para "descolar" de Mitt Romney nas sondagens.
Donald Trump chegou à Casa Branca através de uma campanha de one man show e sempre contou com o seu carisma e a sua imagem como principal marca para atrair um eleitorado à procura de alguém que os representasse e que não se revia nos políticos tradicionais. A sua elevação desde figura de excêntrico mogul nova-iorquino até ao estatuto de líder do Partido Republicano é muito explicada pelo seu factor novidade e pelo espectáculo que proporcionava qualquer uma das suas aparições públicas, em especial os seus comícios diante de multidões entusiastas e em que falava de improviso, quebrando todos os padrões do que era politicamente correcto (e aceitável).
Ora, a essência espectacular, imprevisível e disruptiva de Trump fez com que todos os seus eventos fossem seguidas com enorme interesse pelos media, a necessitarem desesperadamente de fontes de audiência (que Trump lhes proporcionava). A CNN, por exemplo, seguia em directo todos os comícios do então nomeado republicano. Donald Trump tinha perfeita noção do interesse que despertava e divertia-se a atrasar as suas entradas em palco apenas para se deliciar com as imagens em directo de um pódio vazio que todas as cadeias noticiosas transmitiam. Com base no seu poder de atracção e na curiosidade que despertou, conseguiu milhares de horas de publicidade grátis em todos os meios de comunicação social norte-americanos (e não só), poupando, assim, dinheiro fundamental que a sua campanha pôde investir, com o sucesso conhecido, em publicidade nas redes sociais.
Foi, por isso, sem grande surpresa que vimos Donald Trump chamar a si a principal responsabilidade na comunicação perante o país sobre o combate que os Estados Unidos estão a desenvolver face à pandemia da Covid-19. Se inicialmente Donald Trump menorizou a ameaça daquilo a que chamava o "vírus chinês" (agora diz que o fez para não criar pânico), durante o mês de Março mudou de estratégia e assumiu a gravidade do problema, começando a realizar briefings diários na sala de imprensa da Casa Branca para relatar ao pormenor todas as facetas da resposta do Estado Federal norte-americano à epidemia do novo coronavírus.
Inicialmente, os números de aprovação do trabalho do presidente subiram ligeiramente e, em especial, a resposta da Administração Trump à crise de saúde pública recebia nota positiva de uma maioria da população. Podia parecer, por isso, que o Presidente estava a sair-se bem em plena pandemia e que, assim, as suas hipóteses de reeleição sairiam fortalecidas desta situação. Contudo, é preciso recordar que, em tempos de crise, é normal o sentimento de rally around the leader e que os números dos líderes políticos costumam subir após provações de nível nacional. Vejam-se, por exemplo, os números estratosféricos de George W. Bush após o 11 de Setembro ou a subida de praticamente todos os índices de aprovação dos principais líderes europeus no auge da luta contra a Covid-19.
Depois, Trump foi Trump e acumulou erros e gaffes sucessivos nas suas conferências de imprensa e os seus números voltaram a descer. Recentemente, a sugestão de se realizarem injecções de desinfectante como uma possível forma de combater o vírus foi a gota de água e obrigou-o a ceder aos conselhos do seu staff e a diminuir a frequência e a duração da sua presença nas conferências de imprensa diárias da Casa Branca. Trump, que, ao contrário de todos os presidentes norte-americanos, nunca se preocupou em estudar de forma aprofundada os dossiers - prefere confiar no seu instinto -, foi posto à prova perante jornalistas experimentados, ficaram à vistas as suas constantes e flagrantes contradições e perdeu em comparação com os governadores estaduais que, maioritariamente, se mostraram mais informados, menos partidários e mais propensos a decidir com base em factos e em conselhos técnicos do que o presidente.
Podemos, por isso, afirmar que podemos, pela primeira vez, ter assistido ao momento em que houve Trump a mais. Ora, como sabemos que o actual ocupante da Casa Branca acredita ser a solução para todos os problemas de comunicação da sua campanha ou administração, este pode ser um momento decisivo para Donald Trump.
No filme World War Z, ironicamente sobre uma pandemia causada por um vírus, a personagem principal, interpretada por Brad Pitt, descobre que a principal força do vírus (a capacidade de ignorar portadores doentes e fracos) é, também, a principal fraqueza que podem explorar, infectando os sobreviventes com doenças curáveis e, assim, evitando a infecção pelo vírus. Será que a principal força de Trump - a sua omnipresência mediática - também se virá a revelar como a fraqueza que o irá acabar por derrotar?
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